3.10.07

Fé-zada

Defender um sistema que não se compreende, mas em que se acredita, por se ter comprovado empiricamente, não é fé-zada -- é justamente uma das bases do ser liberal.
Ser liberal é acreditar no valor da liberdade, também porque ela surgiu naturalmente - e não por "intelligent design". Hayek perde um capítulo da sua "constituição" a tentar explicar isso. Ninguém adivinhou um dia, que eram livres que os homens se davam bem, e vai daí, vamos declarar a liberdade de todos. A liberdade vai surgindo na história, e na vida das pessoas. Vai dando resultados e ganha às outras formas de organizar a sociedade. E aí reside a sua maior fragilidade.
É que por não a sabermos explicar, é que se torna fácil atacá-la quando a vivemos. Por não conseguirmos compreender os seus benefícios (particularmente quando sujeitos a ela) é que somos vulneráveis a quem nos oferece uma alternativa em que deixamos de ser livres um bocadinho, mas ganhamos noutra matéria. O racionalismo daqueles que acreditam compreender a sociedade, as relações entre os Homens e poderem, consequentemente, gizar o plano que nos leva a Utopias de mais benefício para todos (ou de um sinistro benefício comum, que ofusque o mal-estar individual), é esse racionalismo que está por detrás do Socialismo. Marx compreendeu tudo. Marx sabia os males do Capitalismo e como havia de cair. Sabia como o derrotar, que medidas tomar após a sua derrota, e quais as consequências dessas medidas. Marx sabia tudo.
Eu, por exemplo, não sei se Hayek achava o padrão-ouro melhor que o sistema monetário bancário. Mas Hayek sabia que «That we ought not to believe anything which has been shown to be false does not mean that we ought to believe only what has been demonstrated to be true.» Eu nesta estou com ele. É preferível confiar num sistema que nasceu da tentativa-erro dos séculos, do que num que foi arquitectado como o melhor por uns burocratas.

Essa de ter que compreender tudo o que se defende, leva mais cedo ao mais tarde a que se pense que se pode compreender tudo o que nos rodeia. Marx achava que sim, eu acredito mais no Sócrates (o outro...). Só sei que nada sei.

4 comentários:

Miguel Madeira disse...

"Sabia como o derrotar, que medidas tomar após a sua derrota, e quais as consequências dessas medidas. Marx sabia tudo."

Só um aparte que não tem nada a ver com a questão - Marx foi sempre muito vago sobre como seria a sociedade após o derrube do capitalismo (mesmo as medidas apresentadas no "Manifesto do Partido Comunistas" eram "medidas de transição" e é dito no prefácio que "não têm muita importância")

michael seufert disse...

Vago, talvez - mas convicto: in communist society, where nobody has one exclusive sphere of activity but each can become accomplished in any branch he wishes, society regulates the general production and thus makes it possible for me to do one thing today and another tomorrow, to hunt in the morning, fish in the afternoon, rear cattle in the evening, criticise after dinner, just as I have a mind, without ever becoming hunter, fisherman, herdsman or critic. (...) and that then the liberation of each single individual will be accomplished in the measure in which history becomes transformed into world history. (...)Only then will the separate individuals be liberated from the various national and local barriers, be brought into practical connection with the material and intellectual production of the whole world and be put in a position to acquire the capacity to enjoy this all-sided production of the whole earth (the creations of man). Ou ainda In place of the old bourgeois society, with its classes and class antagonisms, we shall have an association, in which the free development of each is the condition for the free development of all.

Diria que suficientemente convicto para chegar aonde quero. Mas mesmo que ache que não, penso que não tira nada à minha argumentação. Mas obrigado pela chamada de atenção.

Quizzer disse...

Este post resulta muito curioso num blog de apoio a Ron Paul. Se me permite, deixar-lhe-ia, duas perguntas:

A constituição norte-americana é produto de quê? A constituição e as instituições políticas formais norte-americanas são burkeanas, emanada do costume, uma ratificação de processos de longa duração, de baixo para cima; ou o resultado de um debate racional, arquitectado por alguns?

michael seufert disse...

Quizzer, obrigado pela chamada de atenção - é provável que mais pessoas fiquem com essa dúvida.
Mas primeiro deixe-me dizer que escrevo de forma completamente livre. Isto é, mais ninguém neste blogue é responsável pelos meus escritos. E eu, que apoio Ron Paul, não quer dizer que esteja de acordo com ele em tudo o que ele diz. Não precisará de procurar muito para descobrir algo que eu faria de forma diferente. Mas para encontrar um candidato que me representasse a 100%... só mesmo se fosse eu. [Já agora, o quizzer podia partilhar a sua preferência nesta corrida - sempre ficávamos mais de igual-para-igual...]
De resto, quanto às instituições criadas nos EUA e quanto à DoI:
Estou em crer que a DoI e a Constituição nascem num ponto de grande aperto para os americanos, e que procuram maneira de sair dessa situação. O facto de terem sido elaboradas por uma elite, não quer dizer que não tenha estado um processo de maturação por trás dessa mesma elaboração. Pois basearam-se em fontes tão diversas como Políbio, a Magna Charta e a Bill of Rights inglesa. Boa parte das instituições criadas nos novos EUA já tinham sido testadas e funcionavam. E estava-lhes subjacente algo que os fundadores entenderam como self-evident: liberdade.
O facto de eu achar que muitas instituições que eu não compreendo contribuem duma forma fundamental para a nossa vida em comum, não quer dizer que todas as alterações à ordem só possam ser feitas num estranho trabalho comunitário em que se auscultam tudo e todos para chegara uma espécie de mínimo denominador comum.
Agora, se a DoI ou a Constituição americana não estivessem destinadas a vingar quando foram assinadas, não a estaríamos a defender hoje.